Clássico do Dia: A tentação é incontornável em 'Verão Violento'

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este de Valerio Zurlini que, no fim dos anos 1950, surgiu no bojo de um movimento que confrontou os italianos com o próprio passado

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Numa cena forte de Verão Violento/Estate Violenta, de 1959, Eleonora Rossi Drago discute com a mãe, interpretada pela mesma atriz que faria a mãe de Monica Vitti em O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, de 1962. Lilla Brignone é intransigente. Reprova o comportamento da filha. Eleonora retruca. Exige respeito, diz que é uma senhora. “Então comporte-se como uma senhora!”, brada Lilla. Porque Eleonora perdeu todo o pudor. Com o marido no front, está iniciando um affair com o garoto. Na época, o jovem Jean-Louis Trintignant devia ser um dos atores mais invejados do planeta.

Brigitte Bardot em E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, no alvorecer da nouvelle vague, a Rossi-Drago no Valerio Zurlini. Ele teve nos braços algumas das mulheres mais desejadas do mundo. Não as pin-ups, as starlettes. Mulheres, de verdade. Logo em seguida veio a Anouk Aimée de Um Homem, Uma Mulher, de Claude Lelouch, Palma de Ouro em Cannes, ao som do chabadá-badá romântico de Pierre Barouh. Embora jovem, e franzino, aparentemente inexperiente, Trintignant passa uma imagem de virilidade. Teve um caso rumoroso com BB. Sua dança de corpo colado com a Rossi-Drago fazia jus ao título da música, Temptation.

Jean-Louis Trintignant e Eleonora Rossi Drago em cena de 'Verão Violento' Foto: Titanus

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A tentação era incontornável em Verão Violento. O casal entregava-se à sua paixão proibida. Para quem era jovem na época, aquilo era um choque. Na produção estandartizada de Hollywood, predominava o moralismo. As camas eram separadas e, para poder usar a palavra 'sêmen' num drama de tribunal, num caso de estupro – Anatomia de Um Crime –, Otto Preminger teve de comprar uma briga com a censura. As coisas iriam mudar – já estavam mudando na Europa, com Ingmar Bergman, a nouvelle vague, os italianos. E havia o quadro histórico em Verão Violento. Não era só o desejo – era o ano.

O filme passa-se em 1943, e aquele ainda era um ano tabu na consciência dos italianos. A queda do fascismo confrontava a Itália com sua memória traumática – a guerra, e o embate civil entre forças antagônicas, os órfãos de Benito Mussolini e os integrantes da resistência, os comunistas e os democrata-cristãos que dominariam a vida política italiana pelos anos e décadas seguintes, até o recrudescimento do fascismo nos anos 1970, que inspirou o último Pier-Paolo Pasolini – Salò, os 120 Dias de Sodoma.

Sempre houve um culto a Zurlini. No Brasil, o oficiante foi Carlos Reichenbach, na França, Jean Gili, na Itália, Alberto Cattini (ou terá sido Sergio Toffetti?). Zurlini amava Guerra e Paz, era tolstoiniano de carteirinha. Acreditava que uma história privada, como a dos amantes de Verão Violento, só ganha amplitude num quadro histórico que aumenta mais as dificuldades dos protagonistas. Foi assim de novo em A Garota com a Valise, Dois Destinos – a pungente história de dois irmãos de temperamentos e formações diversas durante a guerra, com brilhante uso da cor –, em Le Soldatesse, Sentado à Sua Direita, A Primeira Noite de Tranquilidade e O Deserto dos Tártaros. Zurlini ambientou Verão Violento na própria cidade à beira do mar Adriático em que o Duce, em pessoa, passava as férias, Riccione.

Roberta e Carlo, a Rossi-Drago e Trintignant, dançam de corpo colado, alheios ao mundo e ao fundo o céu é iluminado pelo clarão das bombas dos aliados, que avançam para derrotar (momentaneamente?) o fascismo. Roberta perde a razão, deixa de se comportar como uma senhora porque descobre o próprio corpo, cede às suas exigências. E Carlo, dizia Zurlini, que se projetou no personagem –“Só não tive a ventura de ter uma Rossi-Drago na minha vida” –, é um rapaz estranho, um pouco idiota porque, no fundo, como filho da burguesia, é produto de uma educação (fascista) que queria uma juventude estúpida, que não pensasse nem questionasse, uma juventude pouco inteligente.

Verão Violento surgiu no bojo de um movimento que, no fim dos anos 1950, confrontou os italianos com o próprio passado. Roberto Rossellini ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1959 com De Crápula a Herói/Il Generale della Rovere, magnificamente interpretado por Vittorio de Sica. Florestano Vancini venceu, no ano seguinte, o prêmio da melhor primeira obra, também em Veneza, por A Noite do Massacre/La Lunga Notte del 43, que se passa no mesmo ano emblemático de Verão Violento, evocando os levantes populares que se seguiram, em Ferrara, à morte de 11 resistentes pelas brigadas fascistas da República de Salò. Vancini, vale destacar, integra a equipe do Zurlini. O roteiro teve participação da viscontiana Suso Cecci D'Amico e o diretor sempre admitiu sua dívida com dois grandes autores, Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti, o primeiro pelo olhar ético e estético, o segundo pelo foco histórico.

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Eleonora Rossi-Drago já era considerada uma atriz importante – de Antonioni, Luigi Comencini, Pietro Germi, Giuseppe De Santis, etc. Pelo Zurlini, foi melhor atriz em Mar del Plata e recebeu o Nastro D'Argento, também como melhor atriz, na Itália. Do elenco também participa a jovem Jacqueline Sassard, outra das mulheres mais belas da época. Antes de Verão Violento, Zurlini escrevera um roteiro que pretendia realizar com ela, mas quem dirigiu Guendalina foi Alberto Lattuada. Consta que Zurlini era apaixonado por Jacqueline, que teve uma breve e importante carreira, filmando com Vancini (Enquanto Durou o Nosso Amor), Joseph Losey (Estranho Acidente) e Claude Chabrol (As Corças). Jacqueline Sassard abandonou o cinema ao se casar com Gianni Lancia, que foi um destacado engenheiro de carros de corridas nos anos 1950. A curiosidade é que o casal viveu alguns anos no Brasil.

Onde assistir :

  • À venda em DVD

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